Crônica — Raça de Víboras

     
    Às vezes me perguntam por que sou tão duro quando falo de religião. Outras vezes não perguntam, apenas julgam, como quem já tem a resposta na ponta da língua, decorada desde o berçário religioso. Mas hoje eu não estou com paciência pra florear. Hoje eu quero falar de peito aberto, como quem não deve e não teme: cansei dos que falam em nome de Deus com o bolso cheio e a alma vazia.

    Porque é fácil, fácil demais, levantar a Bíblia como escudo quando se quer bater em alguém. Difícil é segui-la quando ela te desafia a abrir mão do conforto, da vaidade, do controle. Quando ela diz: “não acumule tesouros na Terra”, e você está ali, engordando contas, propriedades, likes e ego. Quando ela diz: “dê de comer aos famintos, vista os nus, visite os enfermos”, e tudo que você entrega são migalhas do que já não te serve mais.

    Eu fico ouvindo essas pregações sobre pecado e pureza, e me pergunto: quem foi que te deu o direito de medir fé com régua moral? Quem disse que seguir Jesus é levantar bandeira de comportamento? Porque se for pra falar de Jesus, vamos falar de verdade. Vamos falar daquele que se sentava com prostitutas, ladrões, leprosos, excluídos. Aquele que olhava nos olhos dos fariseus e dizia: raça de víboras. Que chamava de hipócrita quem se achava melhor por seguir a letra e ignorava o espírito.

    Você me diz que é cristão, mas vive julgando o outro pelo amor que sente, pela roupa que veste, pelo corpo que tem. Vive ditando padrão de família, de nação, de decência. Eu digo: padrão é prisão disfarçada de ordem. É a cerca invisível onde você pendura seus medos pra parecer convicção.

    E não, não sou eu que julgo. Eu constato. Constato que há mais evangelho nos becos do que nos púlpitos. Que há mais fé nos que dividem o pouco do que nos que guardam o muito. Que ser cristão, de verdade, exige entrega — não do que te sobra, mas do que te dói dar.

    Sabe, outro dia escrevi que prefiro estar entre os excluídos. E escrevi pensando em alguém. Alguém que defende com unhas e dentes o tal do padrão. Que acredita que só há uma forma certa de amar, de viver, de existir. Acho que ele nem percebeu que era dele que eu falava. Talvez porque quem defende muros raramente olha para dentro.

    Mas eu olho. Olho e escolho. E escolho ficar do lado de quem sangra, de quem chora, de quem é deixado de fora. Porque se for pra ter fé, que seja essa: a fé que abraça, não a que aponta o dedo.

    E se isso te incomoda, talvez seja hora de rever o que você chama de cristianismo. Porque o Cristo que eu li não vestia terno. Ele lavava os pés dos outros.

Julian SA

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