O dia que visitei a religião de matriz africana, um conto baseado na vida real, por Julian SA

O dia que visitei a religião de matriz africana

um conto baseado na vida real, por Julian SA

    Lá estava eu, sendo convidado para visitar um templo onde comumente acontecia os encontros de Umbanda. Convidei meu cônjuge e lá fomos, próximo das vinte e três horas da noite.
    O encontro não era propriamente dito de Umbanda. Naquela noite aconteceria uma festa de santo, comemorada por integrantes da religião da Nação de Cabinda.
    O céu estava estrelado e não se via uma única nuvem perpassando pelo firmamento. O clima estava ameno e o trânsito não se via na via para nos atrasar. Chegamos na localidade e os rituais já aconteciam.
    Pasmem, ritual não é sinônimo de magias misteriosas. Ritual é toda pratica feita em um cotidiano. Até mesmo um cristão que se tem em presença num templo é um praticante de rituais.
    Alguns atrasados iam chegando, todos travestidos com vestes à caráter. Não nego que me retraí em ver tudo aquilo pois, sim, cresci em volto de ditos cristãos que demonizavam e demonizam religiões de matriz africana e aterrorizavam e aterrorizam crianças com histórias de satanás.
    Haviam no máximo três dezenas de pessoas espalhadas por todo o terreno. Algumas sentadas, outras escoradas em carros ou nos varais que cruzavam aqui e acolá. Todas viam de longe o culto acontecer. O batuque era alto e a cantoria era fervorosa. Algumas pessoas prestavam a atenção, outras conversavam descontraidamente. Ninguém nos reparava ou fazia juízo de valor. Éramos senão pessoas respeitosas que mereciam respeito, vindas para prestigiar os ritos.
    Lembro-me que a decoração trazia uma paleta de branco e amarelo. Logo vimos que próximo da casa coberta haviam três mesas com fartura, sendo essa com bolos decorados e frutas. O cheiro de comida vinha logo da direita, despertando a fome daquele que brincou que daria presença pela comida.
    Sim, faço brincadeiras com assuntos que as pessoas veem com seriedade. Apesar de ser ateu, me pondo na pele de um crente, não acreditaria que brincadeiras inocentes incomodariam entidades de pura luz.
    Não perdemos tempo, aliás, meu cônjuge que me guindou (sou muito tímido), e fomos logo para dentro do fogo.
    Setenta por cento dos presentes estavam naquela pequena sala. A cantoria era agradável e os ritos eram mágicos. Não que houvessem mágicas, de fato (pelo menos não que eu tenha notado com minhas vistas mundanas), mas a magia em meu ponto de vista é tudo aquilo que foge da nossa visão comum do que seja beleza.
    Após o que entendi ser o primeiro ciclo de ritos, saímos todos para comer um delicioso cabrito de panela com farofa. Estava uma delícia! Nunca havia comido a carne e confesso que fora muito bem preparada.
    Em seguida, novamente fora começado os ritos. Para quem se pergunta, o que me lembro, os integrantes circundavam o centro do salão em espiral, indo e voltando, das extremidades para o centro e do centro para as extremidades. Por vezes os homens andavam em círculos no centro enquanto as mulheres por fora, por outras, o contrário acontecia. Todos vinham e iam em cantoria. O batuque acontecia ao lado. O tambor era batido com paixão e o goela cantava afinada.
    Dali alguns minutos, a segunda parte finalizou e saímos para comer novamente. Não lembro o que era, mas não deixou desejos; estava delicioso igual!
    Não ficamos até o fim, meia-noite “pegamos nossos trapos” e lá se fomos noite a fora, para a nossa casa abençoada, sabendo que nenhum mal nos viria afligir. Fomos de coração aberto e saímos de coração aberto. Entramos sem preconceito e saímos com menos preconceito ainda. O fim do culto nunca fora a maldade, como bem sabíamos.
    Mudou algo em minha vida? Sim, muito! Toda a religião possui seus erros e seus acertos. Ali estavam pessoas comuns, como você, eu, nossos pais, o tio do bar... Pessoas boas que falhavam de vez em quando. Pessoas ruins que não sabiam que eram ruins. Eram senão pessoas tão normais quanto o seu parente católico ou seu vizinho evangélico.
    Mas algo me tocou muito...
    Fui presente hora ou outra em igrejas. Uma, em questão, da qual não preciso dizer sua vertente, principalmente me teve como visitante. A tal era a doutrina que mais me agradava na época; a que mais me fazia sentido. Eu possuía tenros seis anos de idade e naquela época a religião não me abraçava por completo, sempre me parecia faltar algo.
    Lembro que em dias de festas eram convidados sacerdotes de diferentes templos. De fato, ali se tinha em fogo. No fim, vendia-se salgados para saciar a fome dos que ali ficavam três horas passadas.
    Questionei, na época (sim, com seis anos de idade eu já me via impertinente com aquilo que me chamava a atenção), se era devido fazer vendas no templo de Deus, visto que o próprio Cristo fizera “quebra-pau” com vendedores no templo do Pai. A resposta era que os fundos eram arrecadados para “obras do senhor”.
    Na época o argumento me foi satisfatório, contudo, olhando para trás vi que lá havia um garoto que muitas vezes voltava para casa com fome. A mãe não possuía fundos para partilhar daquela ceia e se envergonhava em pedir para os líderes do templo.
    Tenho muitas discordâncias com algumas práticas religiosas e, claro que as de matriz africana não ficariam de fora. Contudo, me tocou muito que, na “terra do demônio” (assim visto por muitos ditos Cristãos), fui acolhido sem preconceito e a ceia me foi dada como um verdadeiro irmão do dito Cristo. Enquanto isso, o rapazote de seis anos de idade voltava para casa com água na boca e o roncar de barriga na dita casa de Deus.
    Hoje, eu olho para trás, lembro da pergunta que fiz quanto ao comércio na casa do Senhor e me vejo em pensamento: onde se encontra a caridade no comércio, mesmo que para a “obra do senhor”? Onde está o altruísmo? Onde está o fazer o bem sem esperar o retorno? Enquanto na “terreira de macumba”, vi os membros se ajudarem para o banquete, no templo do Todo Poderoso, os seguidores tiveram que ter o pagamento para dar a ceia que alguns não teriam.
    Portanto, tenhamos menos preconceito e, tenhamos em mente que, podemos aprender até mesmo com nossos “piores inimigos”.

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