The Last of Us - O Mundo quer ser igual e se vê cego rente ao diferente (UMA CRÍTICA APÓS O FIM DA 2ª TEMPORADA)

    Enfim, chegamos ao fim da segunda temporada de The Last of Us e, com ela, vieram diversas polêmicas que se misturam com pontos de vista políticos e escolhas de roteiro.

    Em termos gerais, considerei a história envolvente. Não tenho certeza se assistiria tudo novamente, pois, ao mesmo tempo em que é uma série boa, ela não trabalha tão bem os personagens e a trama a ponto de nos deixar imersos o suficiente para querermos revisitar aquele mundo.

    Apesar de ser uma adaptação de uma obra já existente — vinda de um jogo denso e repleto de camadas que vai muito além de uma simples gameplay — a série faz algumas escolhas que modificam a história original. Por isso, recebeu várias críticas de fãs, que a consideraram pouco fiel ao material que conheceram primeiro.

    Na minha opinião — e é apenas a minha opinião — cada forma de expressão artística deve ser vista como uma manifestação única. Caso o jogo não existisse, a série provavelmente seria considerada inovadora, envolvente e instigante. Eu, por exemplo, não joguei o material original, mas assisti a muitos vídeos. Poderia ter sido influenciado a rejeitar a série, mas, há algum tempo, após uma mudança simples de perspectiva, passei a enxergar cada obra como uma forma distinta de expressar arte. E, caso não houvesse outro material com o qual compará-la, o que foi criado ainda assim se sustentaria por seus próprios méritos.

    Desde que incluíram um personagem negro no universo de Tolkien, venho percebendo o quanto o “diferente” incomoda. Tolkien, por exemplo, nunca descreveu a cor da pele de seus personagens com precisão — e, mesmo assim, o elfo negro em Anéis de Poder incomodou muita gente. O que me incomodou na época foi a cronologia da história, não os personagens. Mas comecei a perceber que nem os próprios filmes foram totalmente fiéis aos livros — e ainda assim funcionaram bem. Podemos comparar as versões e apontar quais foram melhores, mas também podemos (e talvez devêssemos) vê-las como boas obras independentes.

    Da mesma forma que a pele de um personagem incomodou alguns, outros se incomodaram com a aparência da atriz principal de The Last of Us. Não precisamos nem nos aprofundar no quanto isso é baixo e irrelevante. Podemos, sim, debater escolhas narrativas ou aspectos da atuação, mas as críticas geralmente se escoram em comparações com o material original. 

    Estamos diante de um material novo. Apesar de baseado em uma obra existente, continua sendo algo original. Não é à toa que existem diversas representações da história de Jesus, com licenças poéticas que se distanciam dos evangelhos. E falando em aparência: não esqueçamos que Jesus seria mais parecido com um homem palestino do que com o europeu branco retratado por muitas obras renascentistas. Talvez, na época, um Jesus de pele parda não fosse aceito. Mas hoje, o mundo está cada vez mais consciente de que ele não era o homem de pele branca e olhos claros comumente representado. O mundo muda. A arte muda. Ser conservador é, em muitos casos, fechar os olhos para o fato de que tudo é mutável. A ciência muda. A religião muda. Os paradigmas mudam. Portanto, devemos aceitar que o diferente existe — e que não há nada de errado nisso. O diferente pode, sim, entregar uma história tão boa quanto a versão anterior.

    Falando em “diferente”, The Last of Us — tanto na série quanto no jogo — traz uma protagonista LGBT. Trata-se de uma personagem com representatividade e profundidade, não apenas alguém que se atrai por pessoas do mesmo sexo. Ela tem desejos, anseios, se contradiz, tem dualidades, assim como qualquer pessoa real. Às vezes quer alcançar seus objetivos a todo custo, às vezes hesita — o que mostra que, assim como nós, ela não caminha de forma linear. Talvez a atriz se distancie da aparência da personagem original, mas isso não deveria ser um problema, como já comentei. Aparência é um critério infantil na hora de escalar um elenco. E muitas decisões de roteiro fazem sentido quando alinhadas ao que a atriz consegue entregar de forma verdadeira. Precisamos aceitar também que o que se faz em um jogo é, muitas vezes, impossível na vida real. No jogo, a personagem é Railander! (risos)

    Será que o fato de termos uma protagonista mulher e LGBT serve, para alguns, como justificativa para rejeitar ainda mais a série? Será que, se o personagem fosse um homem branco e heterossexual, o peso das críticas seria o mesmo? Esse tipo de julgamento me lembra como a cultura reage de forma diferente a certos gostos: por exemplo, bebê reborn virou meme, mas raramente vemos o mesmo happening sendo criado para homens adultos que colecionam carrinhos. Às vezes, brinco dizendo que o homem hétero gosta mesmo é de outro homem — e que seus desejos ficam guardados, cativos, no armário da própria rigidez.

    Pois bem: a série, em minha opinião, apesar de não me causar vontade de reassistir, é boa. Como tantas outras obras, The Last of Us tem sua singularidade. E por ir contra tantos paradigmas, acaba sendo rock’n’roll. Como sempre digo: rock’n’roll não é apenas um gênero musical, é uma expressão artística que nunca se preocupou com o padrão. Vejo The Last of Us como uma boa série, independente do material original. E tudo bem preferir uma versão ou outra, contanto que entendamos que cada uma funciona como uma expressão separada.

Julian SA

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