A Pregação do Macaco
trecho do livro "A Revelação de Matias", por Julian SA
— Olá, primo, como vai você? — perguntou o bonobo.
— Tudo bem — respondeu Matias, nem se preocupou em perguntar de volta “e você?”, ficou pensando no que o primata o chamou. — Como assim primo?
— Achei que fôssemos parentes — respondeu ele, levantando uma das sobrancelhas.
Matias se aproximou do animal, que apontou para uma outra pedra menor ao lado da maior, para o rapaz sentar.
— A ciência dizia que éramos parentes, mas olha agora, estou falando com um macaco no paraíso de Deus. E o negócio de Adão e Eva? — perguntou Matias.
— Não sou apenas um macaco, meu amigo — disse o bonobo, calmo. — Sou um bonobo, um bonobo amigo, um bonobo pecador. Não tenho permissão para revelar-lhe todas as coisas, Deus não revela tudo e a todos. Adão e Eva é um grande mal-entendido de pessoas pouco esclarecidas. Você imagina como seria explicar sobre a origem do universo, segundo o que você conhece, para pessoas há milênios atrás? Provavelmente não entenderiam bulhufas — ele riu. — Você certamente descende de Adão, mas quanto a Adão e Eva serem como diz a Bíblia, não posso dar-lhe a resposta.
— E como você se chama?
— Me chamo Bonobo.
Matias ficou pensando, ele não tinha um nome normal, assim como a Coruja e a Esperança. O esquilo, porém, tinha um nome. Também falou que era um pecador, um amigo, assim como a Coruja e a Esperança, mas nem se preocupou em indagar quanto a isso.
— E como tudo se originou, então? — tentou perguntar Matias, pensando que talvez o primata soubesse essa resposta, já que entendia um pouco sobre ciência.
— Vocês humanos estavam tão longe da verdade, por mais que estivessem no caminho certo — começou o Bonobo, olhando Matias. — Deus deixou suas criações caminharem com suas próprias pernas, deixou todas as perguntas sobre o universo junto com as respostas, vocês humanos estavam no caminho certo sobre o funcionamento da criação de Deus.
— E conseguiremos alcançar esse conhecimento até os fins dos tempos?
— Isso não posso lhe responder. Posso apenas falar um pouco daquilo que você conheceu — respondeu Bonobo, gesticulando com as mãos.
— Então o Big Bang aconteceu? A evolução das espécies?
— Sim, um pouco diferente da forma que vocês conheceram, mas vocês estavam no caminho certo. Deus é um ser calculista, apenas deu o pontapé inicial com algumas leis físicas primordiais, o que veio depois era apenas consequências do que Deus criou inicialmente. Como ele é onisciente, sabia de tudo o que aconteceria até os fins dos tempos. Independentemente de como criaria, já saberia o resultado final, portanto, de algum jeito teve que começar.
— Então Deus não interfere na vida?
— Somente o necessário.
— Muitas das pessoas que estão no paraíso de Deus provavelmente discordariam de você! — afirmou Matias, lembrando de pessoas religiosas que repugnavam as teorias das origens.
— Verdade, mas nem todo mundo conseguiria ter todo o conhecimento do universo com setenta anos de vida. São ignorantes — respondeu o Bonobo, falando de uma maneira bondosa e calma, sem a pretensão de ofender.
O Bonobo olhou para suas mãos e arranhou a pedra em que estava sentado com a unha do dedo indicador, como se estivesse distraído. Então ele voltou a falar, dessa vez de forma descontraída:
— Vocês humanos não são perfeitos, mas um dia serão. O caos universal só leva a um lugar, ao progresso. Por isso o seu planeta é do jeito que é — falou quase como se Matias não estivesse ali.
Matias escutou aquilo e ficou confuso.
— Como assim, as pessoas aqui no céu são pecadoras? Não são perfeitas? Como estão aqui no paraíso, então? O caos a que você se refere, seria a Teoria do Caos? Quando acho que terei perguntas respondidas, cada vez mais me deparo com dúvidas — disse ele.
— Acho que você já descobriu algo peculiar sobre essas pessoas — respondeu Bonobo, Matias apenas fitou-o. — Acalme-se, você está no caminho certo — ele continuou antes mesmo que Matias fizesse outra pergunta sobre aquelas pessoas. Também voltou a arranhar a pedra, descontraído. — Quanto ao Caos, é exatamente o mesmo que você pensou. Mas é um pouco complexo falar dele sabendo que Deus sabe de todas as coisas, incluindo o desenrolar da trama da história do universo até o final dele, pois a Teoria do Caos, como você sabe, se refere a pequenos acontecimentos de hoje que daqui a milhares de anos trarão consequências diferentes e não previsíveis, menos para Deus. Independente disso, apesar de ser difícil saber o dia de amanhã — mas Deus sabe — uma coisa é certa: o progresso chega e não há como evitar.
Matias ficou muito pensativo com tudo o que ouviu. Queria saber mais.
— Você também falou que um dia seríamos mais perfeitos: estamos mortos, estamos no paraíso. Não deveríamos permanecer eternos como somos?
— Eu disse? — perguntou o Bonobo, desviando o olhar de seus dedos e fitando Matias, parecia fazer-se de desentendido.
O rapaz apenas o fitou de volta, decidiu não perguntar mais sobre esse assunto, provavelmente o primata[A4] não iria lhe contar nada.
— Você por acaso conheceria a Coruja e a Esperança? Você é como eles? — perguntou Matias, no fundo sentia que eles não eram apenas o que se mostravam ser.
— Talvez — respondeu Bonobo.
— Você não é apenas um primata, não é apenas um animal. Você se mostra mais inteligente que qualquer criatura que me deparei. Arrisco a dizer que até mesmo mais inteligente que qualquer outra pessoa no paraíso — disse Matias.
— Para Deus, pouco importa quem é inteligente ou não, todos são importantes. Desde o animal mais bruto até o arcanjo mais temeroso — falou o primata gesticulando com as mãos enquanto falava e às vezes voltava a arranhar a pedra. — Cada forma de vida é importante para o Senhor, todos possuem sua beleza, sua singularidade, são únicos mesmo que sejam da mesma espécie, todos importam como igual, pois Deus é justo e o seu amor não é seletivo — os olhos do macaco brilhavam à luz das estrelas refletidas no lago atrás deles.
Matias chegou a se arrepiar, por um segundo esqueceu sua decepção com Deus, mas logo em seguida lembrou de todas aquelas almas no inferno sendo torturadas eternamente enquanto havia pessoas no paraíso que provavelmente não eram dignas — Rachel era um exemplo disso. “Será que Deus se enganara em pô-las aqui?”, perguntava-se ele. Duvidava que o primata iria responder essa pergunta, provavelmente ele diria “você vai descobrir”. Decidiu fazer outras perguntas, que talvez fossem respondidas.
Olhou ao seu redor e notou novamente como aquela noite estava linda, assim como todas as outras. Batia uma brisa fresca e gostosa, as árvores balançavam devagar como se estivessem dançando uma linda valsa. Matias se virou para o primata e disse:
— Os humanos foram tão cruéis com os animais — afirmou ele.
— De fato foram — começou Bonobo, calmo. — Mas veja, na grande árvore da vida, o mais apto sobrevive, mesmo que um animal tenha que sobrepujar o outro, desde o leão devorando um cervo indefeso, a uma bactéria parasitando um ser maior. Quanto mais moralmente evoluídos forem, mais deixarão para trás esses instintos animalescos, mais evoluída sua alma será, pois sua inteligência provém dela.
— Os humanos parariam de matar animais, até mesmo para comer?
— Sim.
— Seríamos veganos?
— Muito melhor — Bonobo olhava no fundo de Matias, com aqueles olhos brilhantes, gesticulando com as mãos.
— E antes do fim dos tempos, chegaremos a esse nível? — perguntou Matias, imaginando qual seria a resposta do primata.
— Isso não posso dizer — respondeu Bonobo, girando um pouco a cabeça de uma forma bondosa, como se quisesse revelar mais do que deveria. — O que posso lhe adiantar é que toda a humanidade já foi tão animalesca, não que ela ainda não seja, mas você me entendeu, quanto qualquer outro animal, visto que vocês foram uma sequência de evoluções ao longo do tempo.
— A alma é o que dá a inteligência ao corpo, então? Ela evolui junto com o animal? Um animal qualquer poderia ter uma alma como a nossa? — perguntou Matias, achando incrível tudo que estava aprendendo, já que amava tópicos sobre evolução.
— Isso você terá que descobrir.
— Você se refere a esses animais que estão no paraíso?
— Isso você terá que descobrir também.
— Esses animais do paraíso falam e possuem uma certa inteligência, eles possuem uma alma mais desenvolvida que os animais que conheci na Terra?
— Você já sabe minha resposta — disse por fim o primata, deu um sorriso e olhou de forma bondosa e calma para o rapaz. — Bom, acho que vou indo, estou com um pouco de sono. Você deveria fazer o mesmo, ouvi dizer que você tem bastante o que fazer.
O rapaz fitava Bonobo imaginando se ele de fato conheceria a Coruja e a Esperança, mas decidiu não perguntar, sabia que não receberia respostas. Bonobo se levantou e entrou vagarosamente na mata.
— Tenha uma boa noite, meu rapaz, e boa sorte — disse por fim, sumindo, após alguns metros de caminhada, entre galhos e folhas.
Matias apenas acompanhou o primata sumir na penumbra da noite clara, as folhas e os galhos balançando calmamente conforme ele adentrava na mata, apoiando-se com os nós dos dedos no chão.
Matias levantou-se e se retirou também.
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